#4 - Água dourada - Kinktona - Ariel F. Hitz

as asas e o céu

Olá querides safades, tudo bom?

Hoje estamos juntes aqui para continuar os trabalhos da kinktona, a maratona kink do Só uma rapidinha! Até o dia 04 de dezembro teremos textos novos por aqui toda semana, cada um de uma pessoa convidada diferente, e todos muito queer e kink!

Quem escreve pra vocês hoje é o Ariel F. Hitz!

Apresentação

Ariel F. Hitz (ele/dele) — twitter, instagram — é um gato laranja homem trans escritor que escreve histórias sobre homens trans! Tem algumas histórias publicadas, entre elas Erasto, um conto de vampiro explorando a vilanidade queer, e "A gente se vê na Parada", antologia LGBT+ da HarperCollins. Além disso, tem um projeto de assinatura mensal do Apoia.se, o Café com Ariel.

Fiquei super animado quando o Ariel aceitou o convite e sabia que ele iria trazer o seu toque especial pras histórias, e não estava errado! Espero que vocês gostem desse texto como eu gostei.

Lembrem-se de conferir a lista de aviso de conteúdo logo no começo do texto e se mantenham segures! Bora?

Aviso de conteúdo

angel fucking, sexo com anjo (caído), primeira vez, ambos virgens, slow burn

Água Dourada

Santiago tem vinte anos e não se lembra de ter sonhado sequer uma única vez enquanto dormia.

Talvez tenha algo de errado dentro dele. Meu cérebro deve ter alguma má formação, ele pensa. É comum que as pessoas ao seu redor tenham sonhos. Ele é o único que não tem.

Tive um sonho tão estranho hoje, a mãe diz em uma manhã. Sonhei que seu pai estava dentro de uma canoa. Na terra, eu o chamava, mas ele não ouvia. Ele foi se afastando de mim e eu fui gritando cada vez mais alto.

Na mesma semana, o pai de Santiago é encontrado caído no chão por um dos empregados. Foi o coração, o médico determina. O homem não era tão velho, mas havia histórico na família.

Sonhei que ele dizia não no altar, diz a irmã de Santiago, poucos meses depois da morte do pai, e eu precisava me explicar para todos os convidados, foi horrível. Ela já está com o casamento marcado há meses, e o nervosismo é claro como a água do lago aos arredores da casa. Mesmo com todo o receio, não se ouve nenhum “não” no altar, ela sorri e chora como nunca quando se despede de Santiago e da mãe, deixando os dois para trás para viver com o marido. É um dos raros casamentos que o dinheiro não é a motivação da troca de alianças, e Santiago sente inveja da irmã. Ele quer alguém que o faça sorrir e chorar também, mas as moças que conhece são todas desinteressantes demais, falantes demais, mentirosas demais, desesperadas demais, polidas demais, educadinhas demais e, no meio desse excesso, tem algo faltando. Santiago só não sabe o quê.

Depois do casamento, na enorme fazenda há apenas Santiago, a mãe, os empregados, os animais e os casuais viajantes. Nas madrugadas, Santiago, assim como os empregados, os animais da fazenda e os casuais viajantes, ouve os gritos da mãe, chamando pelo marido já morto. A viúva tem sonhos com o pai dos seus filhos, ela diz. Santiago ouve tudo em um silêncio profundo. Ele nunca sonha com o pai, com uma possível noiva, com algum conhecido, um desastre, um acidente, nada.

Santiago não tem um único sonho sequer. Até que algo muda.

***

É verão. Inconscientemente, Santiago joga os lençóis de seda para o chão. De olhos fechados, seu corpo está pingando suor, os lábios tremem e o peitoral nu sobe e desce numa respiração ofegante. Sua mente presencia algo até então desconhecido em seu universo pessoal.

De início, ele não vê nada. Primeiro, ele ouve.

Santiago, Santiago, Santiago.

É uma voz apressada, gritando pelo seu nome. Ele se lembra de quando a irmã, ainda criança, estava se afogando no lago e chamou por ajuda. O desespero é idêntico.

Depois, ele sente.

Calor. Um vento abafado. A textura da grama em seus pés.

Santiago, você irá me encontrar.

Borrões. Ele tem uma sensação semelhante de quando ouviu a melodia que o pianista tocou no casamento da irmã. É algo lindo, poético, mas também é assustador, porque ele sabe que sua vida nunca mais será a mesma. A princípio, Santiago lembra das joias brilhantes da mãe, guardadas com cuidado na penteadeira. Vê uma imagem de uma criatura nua surgindo e sumindo, como se algo tentasse tapar a visão de Santiago. A pele marrom com pequenos vestígios de algo branco identificável pendendo em suas costas. A criatura tem uma forma humana, mas certamente não é uma pessoa comum. Está curvada, como se estivesse abraçando a si mesma após um soco no pulmão, mas seu rosto está direcionado à Santiago. A criatura quer ser vista, e Santiago precisa forçar a própria mente para focalizar aquele ser.

Vê um olho, e então outro, e mais um. Três olhos. Dourados, como o ouro em seu anel de família. Brilhantes. Três olhos dourados e brilhantes. A melodia se intensifica, o pianista parece bater nas teclas com força.

Santiago, eu estou caindo, e você irá me encontrar, eu vou precisar da sua ajuda.

Os olhos de Santiago se abrem e seu corpo salta da cama com uma urgência que ele não sabe de onde vem. Eu estou alucinando? Ele coloca a palma da mão contra a testa e se pergunta se está com febre. O que foi essa visão? Essa voz? Será a mesma doença de coração que o meu pai teve? Que meu avô teve? Eu vou morrer na próxima semana?

Por dias, Santiago se encontra com diferentes médicos. Sua saúde está perfeita, e todos dizem que o que Santiago teve foi apenas um pesadelo, mas ele sabe que aqueles três olhos brilhantes e dourados não podem ser explicados tão facilmente.

***

Em uma tarde de calor, Santiago se joga no lago da fazenda e permanece submersso até que seus pulmões não aguentem mais. Ele quer gritar. Toda noite, fecha os olhos e reza para que Deus lhe mande algum sinal, lhe explique de alguma forma o que aqueles três olhos brilhantes e dourados significam.

Seu corpo está quente. Não é febre, muito menos culpa do clima de verão. Tem uma coisa incompreensível dentro dele, algo que sequer teve coragem de dizer aos médicos. Santiago flutua no lago. Ele quer fazer alguma coisa, mas o quê?

Sozinho, ele se lembra do sonho que teve. Três olhos dourados na escuridão. Na grama, molhado e nu, água pingando dos pelos do seu corpo, ele deseja sonhar aquilo ao menos mais uma vez. Fecha os olhos, caminha sem rumo ao redor do lago, desejando que aqueles três olhos estivessem o observando em segredo. Ele toca no próprio pescoço e se pergunta como seria o toque daquela criatura. Quente, ele pensa. Dedos longos apertando sua garganta. Quente.

Santiago mergulha uma última vez na água gelada antes de voltar para casa.

***

Ainda faz calor, e Santiago consegue ouvir uma coruja lá fora. É um horário tão denso da madrugada que ninguém está acordado, nem mesmo os empregados responsáveis pelo jantar ou a senhora que, diariamente, levanta cedissímo e assa uma dúzia de pães no forno.

Ele acorda abruptamente. Não há sonho algum, apenas a sensação de que deveria estar acordado. Ele se senta na cama. Está calor. A responsabilidade de comandar a fazenda e as posses da família, o luto pelo pai, o medo de não saber o que aquele sonho significa, aquela sensação no estômago de que seu corpo está quente demais, tudo isso está fazendo mal para Santiago.

Tem o desejo de sonhar mais uma vez, também. Ele caminha até a janela aberta. Ao longe, apenas vegetação. O feijão recém plantado está dando os primeiros brotos. O pasto está com quase dois metros de altura.

Tudo normal. Tudo no mais completo tedioso e detestável normal.

E então o universo ri da cara de Santiago.

Da imensa vastidão do céu, entre aqueles pontinhos brancos de estrelas brilhando, uma luz dourada surge, e, como um pássaro que acaba de quebrar a casca que lhe serviu de casa até então, a luz se choca contra o pasto.

Não há som algum. Ao menos, Santiago acha que não. Tudo o que ele ouve é as batidas do próprio coração. É como olhar para uma pintura e ficar preso dentro da própria mente em busca de um significado para as pinceladas. O mundo exterior não importa.

Ele pula a janela do quarto e corre apressado no meio da vegetação. A noite já não parece mais tão escura. Alguma coisa mudou. No mundo, nele mesmo.     

Com as mãos, Santiago afasta o pasto e abre caminho até encontrar o que procura. Sente os pés arderem ao pisar em pequenas pedras pelo caminho, mas não importa. A visão que tem faz com que toda a dor do mundo se torne irrelevante.

No meio da vegetação, uma área circular onde o pasto está amassado, como se uma esfera tivesse sido pressionada ali, e é nesse ponto que Santiago para, arfando, surpreso em não sentir medo algum. Uma melodia calma parece tocar em seus ouvidos, o tipo de melodia que Santiago julga desconexa com a situação. Um som calmo para um momento desesperador.

Há uma criatura desconhecida caída no centro do círculo. Pela sua posição, parece ter sido empurrada por alguém. Meio sentada de lado, os três olhos dourados e brilhantes piscam na direção de Santiago.

— Você caiu — Santiago diz diante da criatura desconhecida. — Você caiu — repete bobamente. Estava surpreso de sequer conseguir dizer alguma coisa. — Você caiu do céu.

O ser desconhecido está nu, completamente nu. Os músculos do seu corpo são muito bem definidos, pelos escuros crescem por cima da pele marrom, alguns arranhões se espalham pelos seus braços.

— Eu caí — ele concorda calmamente, levantando o rosto em direção às estrelas. Nas suas costas, Santiago percebe que algo branco e brilhante emerge debaixo da pele. Duas linhas paralelas, elevadas, como dois caroços brancos. É a mesma coisa branca não identificável que Santiago viu em seu sonho, mas muito menor. — Eu caí — repete, e sua voz é idêntica ao som que Santiago ouviu naquela madrugada. Você irá me encontrar, eu vou precisar da sua ajuda.

O ser desconhecido não transmite nada além de calmaria. As melodias que ecoam ao redor dele não são ansiosas como as que Santiago ouve toda vez que mergulha sozinho no lago, nem agressivas como quando Santiago se esconde das investidas da mãe em lhe arranjar uma esposa. Por conta disso,  Santiago o carrega em suas costas como quando carrega lenha para dentro de casa no inverno, mesmo que tenha empregados para isso. Leva até seu quarto, torcendo para que ninguém os veja. Ele é seu segredo. Não sabe porquê, nem como, mas sabe que ele é seu segredo. É um segredo. E é seu.

***

Exceto pelos três olhos dourados e os caroços brancos nas costas, o corpo dele é muito parecido com o de Santiago, e é difícil de entender porque os olhos de Santiago se atentam tanto a isso. Nunca havia visto outro homem nu. Não daquela forma, ao menos. Mas ele não é homem, afinal de contas. Nenhum homem caí do céu. Então tudo bem olhar, não é?

Santiago o observa. Deitado em seus lençóis de seda, ele está fraco. Parece confuso e perdido, com os lábios entreabertos e os três olhos vagando pelo quarto de Santiago, desde o retrato pintado com tinta à óleo de um Santiago mais jovem até as velas acesas na cômoda, a estante de livros e a bíblia aberta na escrivaninha.

De pé ao lado do ser desconhecido, Santiago não sabe ao certo o que fazer. Sente vontade de tocar nele, de dizer muitas palavras, de o abraçar.

— Estou sentindo algo estranho — ele diz, apontando para um dos arranhões mais profundos em seus braços. — Aqui.

— Dói? — Santiago pergunta.

Se aproxima dele, e percebe que um líquido branco sai dos arranhões, onde normalmente deveria verter sangue vermelho. Sua pele marrom está marcada por várias linhas brancas, vários machucados superficiais.

Ele não responde, a princípio. Encara Santiago, os três olhos dourados piscando para ele.

— Eu nunca senti dor antes. Eu sei o que é, porque sei que vocês, humanos, sentem, mas é a primeira vez que sinto isso.

Santiago arfa com a confirmação de que ele não é humano. Deveria estar com medo, pensa. Mas por que sentir medo de uma figura tão linda como aquela?

— O que aconteceu com você? Como apareceu em meu sonho? Você se lembra disso, de aparecer em meu sonho?

— Eu me lembro vagamente. Sei quem é você, sei que te procurei, mas parece tão distante. Eu vi o seu rosto em algum lugar. Eu disse o seu nome para alguém. E então eu caí.

— Qual o seu nome?

— Eu não tenho um nome. Talvez eu tenha tido um nome, mas não tenho mais. Também não tenho uma casa para voltar. Se tenho, não sei o caminho.

— Você pode ficar aqui.

Santiago limpa os ferimentos no corpo dele. Pequenas gotas brancas mancham os lençóis de seda, como pequenas estrelas brilhando no infinito do universo.

***

— Do que é que você se lembra, de antes de ter caído do céu?

Santiago está sentado ao seu lado na cama, cortando pedaços de pêssego fresco e entregando em seus dedos trêmulos. Ele parece melhor, mas ainda está fraco.

— Uma voz — ele responde.

Os dedos de Santiago estão melados com o sumo da fruta, e ele se pergunta como o seu novo amigo reagiria se Santiago oferecesse a própria mão para ele lamber. Se imagina esfregando um dos pêssegos no próprio peitoral. De onde vem todos esses pensamentos estranhos? Ele está doente?

— E o que essa voz dizia? — Santiago pergunta, afastando aquelas imaginações sem sentido.

— Estava me repreendendo.

Santiago larga o caroço da fruta sobre a cômoda e se levanta. Lambe os próprios dedos, sem olhar para ele. Santiago gosta de como aqueles três olhos sempre o observam, cada movimento que ele faz. Estavam dormindo lado a lado, os dois, e Santiago sentia os olhos brilhantes e dourados o observando durante as madrugadas.

— Você deveria ter um nome — Santiago diz. — Vamos arranjar um nome para você.

— Um nome — ele repete. — Que nome?

Órion. Você veio das estrelas. Órion parece se encaixar perfeitamente.

— Órion — ele murmura, lentamente, seus três olhos dourados brilhando mais do que nunca. — É bonito.

— Será Órion, então.

***

— O que é isso que eu estou sentindo?

Órion está tremendo, abraçando a si mesmo, com os ombros encolhidos. Lá fora, as folhas das árvores estão começando a cair. É início de outono. Não há mais nenhum arranhão em seu corpo, e seus olhos dourados e brilhantes não estão mais tão curiosos. Agora ele se senta na cama de Santiago com familiaridade, mas não se acostumou com nenhuma das roupas que Santiago deu à ele. Nu, sempre escondido dos olhares curiosos, ele não se importa que Santiago encare tanto cada centímetro de seu corpo.

A janela está aberta, e um vento fraco invade o quarto.

— Meu corpo está tremendo — Órion diz. — O que é isso que estou sentindo?

— Frio — Santiago diz. Também está sentindo. — Você precisa se cobrir com o cobertor, se não quiser usar minhas roupas.

— Você se esconde demais. Eu não gosto de como os seus tecidos me apertam.

— É para se proteger. Você precisa usar as roupas adequadas para o clima e a situação que você está. Se estivesse usando armadura quando caiu do céu, não teria se machucado.

— Não preciso me proteger — Órion retruca, mas se enrola no cobertor de lã mesmo assim. Santiago se lembra do dia em que o viu, de como o sangue branco dele se parecia tanto com estrelas brilhantes.

***

— O que é isto que estou sentindo?

Órion aponta para a própria barriga. Está nu, sentado no chão ao lado da cama de Santiago, e Santiago sequer finge que não é para o peitoral de Órion que está olhando.

— Está fazendo barulhos — Órion diz, ainda apontando para seu estômago. — Já senti isso antes, mas não tão forte assim.

Santiago percebe que também sente. Curioso como Órion consegue compreender o que Santiago sente mesmo sem saber nomear nenhuma dessas coisas. É tarde da noite e Santiago se esqueceu do horário do jantar. Conversar com Órion se tornou a sua coisa favorita.

— Fome. Você está sentindo fome.

***

Já não faz mais tão calor como antes, e Santiago se arrepende de ainda não ter uma boa desculpa para ficar nu ao lado dele. Órion não se importaria, provavelmente. Ele próprio continua a passar os dias sem roupa alguma, lendo e relendo os livros da estante de Santiago, esperando que a noite chegue para que os dois possam conversar com as janelas abertas, sem o medo de que alguém vá descobrir a existência de Órion.

Conversam sobre banalidades, no geral, e Santiago percebe que Órion lembra apenas coisas muito vagas sobre sua vida antes de cair do céu, a maior parte parece apenas delírio. Recebia ordens de alguém, ele diz, mas não sabe quem, e está feliz de não receber mais nenhuma ordem. Santiago deita-se de bruços na cama. Ouve a respiração de Órion, que dorme profundamente. O sol está quase nascendo, e Santiago não sabe porque ainda está acordado. Algo formiga dentro dele.

Deita-se de lado, encarando as costas de Órion. O cobertor de lã repousa um pouco abaixo da cintura de Órion, e Santiago consegue perceber como não há nenhuma imperfeição na sua pele, um único arranhão ou marca de nascença. Com a baixa luz dos primeiros raios solares, vê que já não há mais aquele caroço branco nas costas de Órion. O que quer que fosse, já desapareceu.

Santiago leva dois dedos em direção ao próprio pescoço e pressiona o mesmo lugar que o médico da família pressiona quando checa seus batimentos cardíacos. Está acelerado. A mão de Santiago desce para o abdômen, e ele se pergunta se Órion está com frio, mas ele dorme tão calmamente, a respiração soando como uma leve melodia. A curva da cintura de Órion faz Santiago pensar nas voltas que o próprio estômago parece dar. Sente vontade de tocar na pele dele, de sentir a textura do corpo de Órion. Os olhos de Santiago vagam pelas costas nuas e incentivam os movimentos de sua mão. Ele lamenta que o cobertor esconde aquilo que está abaixo do quadril, mas Santiago já o viu nu tantas vezes que sabe exatamente o formato de seu corpo. O coração de Santiago bate ainda mais rápido. Na palma de sua mão, há algo muito parecido com o sangue branco de Órion.

***

— Estou com calor.

— Como? Está frio. Estamos no meio do inverno.

— Não me sinto muito bem. Acho que estou doente.

— Achei que não tivesse como você adoecer.

— Estou com calor.

— Me deixe ver se você está com febre. Não, não está. Mas talvez seja bom tomar um banho gelado mesmo assim. Quando anoitecer e todo mundo estiver dormindo, vou te levar até o lago para mergulhar um pouco, que tal? Bem rapidinho, para ninguém perceber.

***

— Estou com calor.

— Ainda? Me descreva o que você está sentindo.

Ele está sentado de forma estranha na cama, encarando Santiago.

— Eu quero correr — ele diz. — Mas não com as minhas pernas. Quero que alguém corra por mim. Meu coração bate diferente. Eu sequer sabia que eu tinha um coração. Me sinto quente. Meu corpo está pulsando. Talvez eu tenha mais de um coração.

Santiago se aproxima dele.

— Não sei. Parece tão saudável quanto eu.

Talvez esse seja o problema, ele pensa.

***

É noite. Os olhos de Santiago vagam ao redor do lago. Enquanto Órion emerge e reaparece debaixo da água várias vezes, Santiago está de pé na grama, de sapatos, calça e camisa de mangas longas. É final de inverno, uma leve brisa gelada faz Santiago tremer, mas Órion parece aproveitar a água gelada. Aceitou trazê-lo até ali apenas porque Órion insistiu em como sentia calor, mas está com medo de que alguém apareça na noite e veja aquela criatura de três olhos brilhantes e dourados. Eles não entenderiam como Órion é precioso. Muito mais precioso do que qualquer joia de diamante.

Santiago abraça a si mesmo. Ouve apenas uma coruja ao longe e o corpo de Órion movimentando a água. Os três olhos emergem mais uma vez, e, por um instante, Santiago pensa que Órion irá convidar ele para mergulhar junto, mas Órion esfrega o próprio rosto e caminha até a margem do lago lentamente, se aproximando de Santiago, que faz um esforço para encarar seu rosto.

— Eu ainda estou com calor — diz. Está apenas com os pés dentro do lago, água pinga de seu corpo. Ele encara Santiago da mesma forma que o encarou quando questionou sobre porquê sentia frio. Os três olhos dourados estão com as pupilas enormes. — Eu estou doente? Eu li em um dos seus livros que um líquido vermelho escorre dentro dos seus corpos, mas isso não acontece comigo, então talvez eu esteja doente de outra forma.

Santiago morde a parte de dentro da boca. Abaixa um pouco a cabeça e enxerga, no corpo de Órion, a mesma reação que o próprio corpo tem no meio das madrugadas

— Não acho que você esteja doente — diz, levantando o rosto. — Eu sei de algo que pode te ajudar. Eu posso…

Sua voz se perde do ar, Santiago olha ao redor, buscando qualquer olhar alheio, mas não há ninguém. Mesmo se houvesse, ele não conseguiria enxergar. Tudo o que pensa é em Órion.

— Pode o quê, Santiago? Me ajude, por favor.

Santiago encara seus três olhos dourados.

— Eu posso… — ele tenta dizer, mas se perde novamente.

Santiago não precisa checar para saber que seu coração bate rápido. Ele dá um passo na direção de Órion, o suficiente para tocar no exato lugar em que toca no próprio corpo quando sente a necessidade.

Órion arfa, os lábios abertos em choque, e leva uma das mãos molhadas até o ombro de Santiago.

— O que você está…

— Eu posso parar, se você quiser.

Órion balança a cabeça.

— Continue.

Santiago para apenas por um breve instante, cospe na palma da própria mão e volta a tocar em Órion. Ouve uma melodia muito alta e destrambelhada dentro da própria mente, como se alguém dançasse em cima de um piano. Órion aperta o ombro de Santiago e um som extremamente humano sai de seus lábios. Já não era mais uma criatura que caiu do céu, era Órion. Não existe nada mais humano do que o desejo.

Com a voz trêmula, os três olhos dourados piscando, Órion pergunta:

— Como você sabe que eu precisava disso? Como sabe fazer isso?

Santiago não consegue conter um sorriso, porque ele não sabe muito bem o que está fazendo, é apenas um reflexo do que faz em si mesmo. Ele se aproxima de Órion ainda mais. Sente o hálito quente que sai de seus lábios entreabertos e ouve os sons de sua garganta. Cada um daqueles sons explicam para Santiago sobre a melhor forma de tocar Órion, e é nisso que ele se concentra. Não existe mais nada no mundo, apenas a textura quente e úmida na palma de sua mão.

— Vem aqui — Santiago pede, puxando gentilmente Órion contra a grama. O corpo dele está molhado com a água do lago, e a roupa de Santiago umedece conforme os dois se movimentam, meio sem jeito, até que Santiago esteja sentado na grama e Órion por cima dele, sentado em suas coxas.

Agora, Santiago levanta o rosto para observar as reações de Órion, e por cima dele há apenas o céu da noite, cheio de estrelas brilhantes, assim como na noite em que o viu pela primeira vez. Os três olhos dourados de Órion brilham intensamente, piscam para diferentes lugares, desde o rosto de Santiago até o ponto em que seu pulso se movimenta freneticamente. Órion curva-se para frente subitamente, a ponta do seu nariz se chocando contra o maxilar de Santiago. Ele começa a dizer algo que talvez seja Eu estou sentindo algo o que é isso mas que rapidamente se transforma em Santiago Santiago Santiago Santiago até que as palavras perdem os sentidos e tudo o que Órion faz é arfar como quem acaba de correr durante horas.

Santiago está sorrindo. Os três olhos dourados de Órion piscam, e ele parece querer buscar na expressão de Santiago uma explicação para o que acaba de acontecer, mas Santiago sabe que não conseguiria explicar aquilo. Ele toca gentilmente a cintura de Órion, como se dissesse está tudo bem.

Órion assente. Afasta o rosto de Santiago, respira fundo e se joga para o lado, deitando-se na grama de olhos fechados. Santiago encara o céu e agradece ao brilho das estrelas antes de olhar para a palma da própria mão e perceber o líquido dourado, espesso e brilhante. Alguns pontinhos da mesma textura brilham por cima do tecido da camisa de Santiago. Ele não consegue conter a vontade de aproximar a mão do rosto. Tem um cheiro diferente, algo que nunca sentiu antes. Seus lábios se abrem e ele passa a ponta da língua em um dos dedos. Doce, quente. Santiago lambe cada um dos dedos, a palma da mão e o pulso. É como se estivesse bebendo água depois de meses, anos, décadas em um deserto onde havia apenas areia e solidão.

O coração de Santiago começa a se acalmar. Órion continua deitado, e poderia parecer que estava dormindo se não fosse os seus lábios movendo-se lentamente, como se dissesse algo sem produzir nenhum som.

Santiago se deita na grama ao seu lado.

— Ele quer destruir vocês — Órion diz. Seus olhos ainda estão fechados.

— Quem?

As estrelas ainda brilham, e Santiago não entende porque Órion está falando de qualquer coisa que não seja sobre a sensação de um encostar no corpo do outro.

— Ele quer destruir vocês — ele repete vagamente. — Mais uma vez. Não com água dessa vez, mas com fogo. Ele se irritou porque eu discordo. Não acho que vocês sejam uma decepção. Eu tentei fazer com que mudasse de ideia, mas ninguém discorda dele.

— Você está delirando — Santiago murmura. — Ninguém vai destruir ninguém.

— Eu não vou deixar — ele diz. — Não vou deixar. Vou salvar você, Santiago.

— Sim, você vai — Santiago observa os pontos brilhantes no céu. Sente que é a primeira vez que sua garganta não está seca. — Você vai. — Não há motivos para discordar de um anjo delirando. Santiago já está a salvo.

oi, safadinhes. fiquei tão empolgado quando recebi o convite do Koda (muito obrigado, querido!!) que tive um milhão de ideias diferentes, mas essa me despertou um carinho especial. nem acredito que existe uma little fast escrita por mim!! espero que vocês tenham tido uma experiência tão boa lendo quanto eu tive escrevendo.

abraços ♡

Ariel

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E se você leu até aqui, essa é só a quarta rapidinha de DEZ com pessoas autoras convidadas que virão nas próximas semanas. Fica por aqui, manda pra amigues, divulga nas redes sociais e me ajuda a levar esse projeto mais longe ❤️ 

É isso! Um xêro e um queijo,

Kodinha

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