#2 - A mesa da masmorra - Kinktona - Anita Saltiel

continuando os trabalhos, dominatrix

Olá querides safades, tudo bom?

Hoje estamos juntes aqui para continuar os trabalhos da kinktona, a maratona kink do Só uma rapidinha! Até o dia 04 de dezembro teremos textos novos por aqui toda semana, cada um de uma pessoa convidada diferente, e todos muito queer e kink!

Quem escreve pra vocês hoje é a Anita Saltiel!

Apresentação

Anita Saltiel (ela/dela) é roteirista de "Níveis de Adrenalina" e "A Hora do Arrepio" para HOTGO/Sexy Hot Produções, roteirista de "Casa, mata ou Fode" para a Xplastic e autora de "Alice 190" e outras histórias. É apaixonada pela pornografia – de todos os jeitos. Fetichista e estuda sobre a história do fetichismo desde os tempos de Aristóteles. Trabalha como Dominatrix profissional, e ainda sobra tempo pra estudar Design de Moda na faculdade.

Você pode conferir mais do trabalho da Anita e saber como apoiar suas produções aqui.

Estava muito animado pra visão que a Anita ia trazer pra essa maratona, com todo seu conhecimento e estudo de pornografia, e tô muito feliz de compartilhar essa história com vocês por aqui.

Lembrem-se de conferir a lista de aviso de conteúdo logo no começo do texto e se mantenham segures! Bora?

Aviso de conteúdo

submissão (completa — escravidão), fornifilia, impact play (mencionado), smoking play (mencionado), trampling (fetiche em ser pisado, mencionado)

Estou imóvel e seminu.

A sala é ampla e arejada, o que é um problema, pois a janela atrás do meu corpo está um pouco aberta e o frio castiga minhas costas. Estar com frio é a pior parte.

Estou imóvel, seminu e segurando uma grande placa de madeira. A submissa à minha frente também se encontra na mesma situação, segurando o outro lado da placa. No centro, alguns livros e um vaso de flor. São flores vermelhas e roxas, algumas quase pretas, as pétalas morrendo conforme o dia passa. É importante que o buquê esteja quase morto, pois se qualquer um de nós se mover, as pétalas cairão no tampo, denunciando o que fizemos.

Diferente de mim, que tenho todas as minhas partes sensíveis cobertas, a submissa está com os seios de fora. Percebo sua respiração suave — exatamente igual à minha — enquanto ela me encara e eu a encaro de volta.

Não sei quanto tempo se passou desde que a Madame nos deixou aqui.

Minutos, horas. Sei que não são dias porque a janela ainda denuncia alguma luz, mas até onde posso enxergar sem me mover, há chances de ter se passado muito tempo mesmo.

Não é um castigo, longe disso. Madame nos trata como presentes, e, quando somos tão bons quanto ela espera, nos dá a dádiva de gozar. Não apenas de gozar com o corpo, mas de gozar de.

Me acostumei com a imobilidade desde os meus primeiros dias de servidão — pedi por isso. Pedi para ser útil.

Implorei para ser útil, na verdade.

Me lembro do primeiro dia, quando Madame me aceitou em sua casa, em seu aconchego e em sua masmorra. Pedi licença e me ajoelhei aos pés da poltrona onde ela estava sentada. Apoiei, ainda apreensivo, a cabeça em seu joelho. Contei-lhe minha vida inteira, se é que se pode contar algo tão extenso em uma porção de minutos, mas fiz meu melhor. Naquele momento, entendi que tinha alguém me ouvindo pela primeira vez na vida.

Entendi, dentro do meu coração, que a raiva e as memórias que maltratei tanto dentro de mim precisavam de um escape, e depois de tentar de tudo — de tudo —  de remédio a terapia, de esporte a cama vazia, de sexo a escrutínio, de namoro a casamento a divórcio. Tentei, em vão, esconder uma parte de mim que eu sabia que jamais poderia esconder. Tentei afundar meus desejos em um mar de concreto e esquecê-los lá.

Pobre de mim.

Chorando no colo de Madame, tive a confirmação da suspeita que me levara até ali; entendi que, por mais estranhas que as palavras possam soar a quem não entende seu real significado, nasci para ser escravo.

A submissa que segura o tampo da mesa comigo é nova. Apesar de eu não gostar de dividir a atenção de Madame, está longe do que cabe a mim opinar na quantidade de escravos que ela mantém pela casa. Somos nós que batemos à sua porta, somos nós que imploramos — ela, misericordiosa, nos acolhe.

Tudo o que sei sobre essa escrava é que fui eu quem atendi quando ela apareceu de joelhos no capacho de entrada. Depois, Madame a levou para a masmorra e fez ali sua entrevista. Confesso que tive muita vontade de ouvir, de espiar, de ser uma mosca e passar pela fechadura.

Ainda que escravo, sou homem, e mesmo adestrado ainda sou uma criatura cheia de curiosidades.

Como todo submisso.

Depois que parei de chorar no primeiro dia, Madame alcançou uma caixa de lenços em cima de uma bancada — sem nem se levantar, parecia estar ali exatamente para esse propósito — e enxugou minhas lágrimas como se faz com um ente querido. Me olhou no fundo dos olhos e disse que eu não era a vergonha que pensava ser, o fracasso que pensava ser.

Senti aquele olhar tão fundo que se Madame tivesse pegado uma faca e aberto minhas tripas ali mesmo para me dissecar, eu não teria notado.

Ela me assegurou que ter desejos não era algo a se envergonhar, e que aquela casa, aquela masmorra, seria meu alívio, se assim eu quisesse. Ela pegou meu rosto com as mãos, envolveu os dedos no meu queixo e me fez derramar mais do que lágrimas — derramei tudo de mim.

— Me puna pelo meu passado — sussurrei.

— Você não fez nada no passado que seja digno de punição — elaborou Madame —, e não é assim que funciona. Aqui dentro, você é livre. Sua escravidão de verdade é lá fora.

Como sempre, ela tinha razão.

Do lado de fora da casa, sou obrigado a viver como uma pessoa normal. Como uma pessoa sem segredos. E ainda que Madame tenha me ensinado que não é vergonha gostar de apanhar ou gostar de ficar horas sem me mover, o mundo ao nosso redor não pensa assim. Ainda.

Naquele dia, baixei a cabeça e comecei a obedecer.

O que me levou a estar imóvel e seminu agora.

O vento às minhas costas se intensifica, e temo começar a tremer. Não posso mover nenhuma parte do corpo, nem mesmo os olhos. Meu olhar está fixo na submissa e percebo que ela também está com frio. Madame já deve chegar. Não é comum que nos deixe sentindo mais do que foi o combinado.

A luz da janela baixa, o que é suficiente para me fazer perceber que estamos imóveis há muito tempo mesmo. Já nem percebo a dor nos pés ou a rigidez dos músculos depois de já ter sido mobília outras vezes. A submissa, porém, parece sofrer um bocado.

Admito que ainda prefiro ser mesa do que ser cadeira. Não tenho as costas boas. Se Madame um dia precisar sentar às minhas costas, temo precisar usar alguma palavra de segurança. Para a minha saúde e a dela, que corre o risco de se estatelar no chão.

Só de pensar, sinto um arrepio. Mordo minha língua e arranco um sangue que não imaginei que pudesse arrancar. Imaginar a cena é quase como uma blasfêmia.

No mesmo momento em que engulo o sangue da língua, ouço também a porta de madeira da masmorra ser arrastada, e o inconfundível perfume especiado de Madame invade a sala. Ela sempre cheira a algo como canela e incenso. É excitante e desconsertante.

A submissa tem agora uma melhor posição que eu; de onde está, consegue ver Madame pela visão periférica. Sinto minha barriga se espremer em um misto de inveja e ciúmes. Se Madame decidir que fomos bons no nosso trabalho, ela será recompensada tanto quanto eu. Todo escravo é um pouco possessivo com seu dono. Mesmo os que negam ser.

Ela arregala um pouco os olhos, o que eu estranho. Não podemos nos mexer, nem esboçar reações. Fico tenso imaginando o que ela está vendo.

— Minhas mesinhas — ouço a voz de Madame bem no pé do meu ouvido, o que me arranca um arrepio que vem lá do fundo da barriga.

Madame está atrás de mim, e passa os dedos no meu pescoço. Sinto o corpo inteiro ameaçar desabar, meu âmago tremer, como se os dedos dela pudessem acender em mim a luz de mil estrelas.

Entendo o porquê a submissa está arregalada. Ela provavelmente não esperava que Madame fosse nos tocar.

Mas nunca se pode esperar nada de uma experiência que é sempre tão cheia de surpresas.

Madame me contorna, e finalmente tenho um vislumbre dos seus cabelos. Das nuances do seu corpo. Tento me manter firme quando ela faz o mesmo com a submissa; se prostra atrás dela, batuca as unhas em sua nuca. Vejo a submissa se arrepiar tanto quanto eu, e me pergunto se eu dei algum sinal de nervosismo tanto quanto ela.

— Fizeram um ótimo trabalho — sussurra Madame no ouvido dela, com lascívia o suficiente para meu coração amolecer. — Deixem o tampo da mesa ao chão e venham se deitar comigo.

O alívio nos braços só não é maior que a alegria de vê-la.

Abaixo o corpo com cuidado, e sinto que minhas pernas podem se quebrar. Deixo minha parte do tampo apoiada no chão, com cuidado para que a placa de madeira não esmague meus dedos. Vendo a dificuldade da submissa, seguro o vaso de flores e a ajudo a também não se machucar. Por mais enciumado que esteja, não quero o mal de ninguém que serve à minha senhora.

Madame nos espera no meio de um divã preto e nos dá o tempo necessário para espreguiçar, esticar e massagear as partes rígidas do corpo. Meus braços, em especial, estão em petição de miséria. Mas não abrimos a boca. Eu gostaria de pedir ajuda da submissa para me fazer uma leve massagem na lombar, com os dedos mesmo, mas não tenho coragem nenhuma.

Me prostro ao lado direito de Madame.

Com seu consentimento, sento-me ao seu lado. Ela me indica o colo, então, para a felicidade de minha coluna, estico as pernas do outro lado e me deito com a cabeça em suas pernas. A submissa parece fazer o mesmo.

— Rainha — ouço sua voz. É uma voz delicada, de mulher medrosa. Muito diferente de Madame.

Estranho a submissa chamá-la de Rainha. Para mim, sempre foi Madame. Imagino se, para outros escravos, ela tenha outros nomes.

Faz sentido, na verdade. Uma força da natureza em forma de dominadora, certamente não poderia ter um nome apenas. Como uma Deusa.

— Sim?

— Posso lhe fazer uma pergunta? — Pede a submissa.

— Sim.

Tomo fôlego. Eu mesmo nunca tive coragem de questioná-la sobre nada, nem mesmo em nossos momentos de cuidado após uma sessão. Sei que posso. Sei que, se perguntar, ela me permite. Mas nunca consegui.

Para uma mulher com uma voz tão medrosa, ela tem mais coragem do que eu.

— O que a senhora quer? O que a senhora quer sentir? Com isso. Conosco.

A pergunta me embrulha o estômago, porque eu mesmo já pensei diversas vezes em suas ambições. No porquê ela se tornou Madame. Rainha. Ela. No porquê continua abrindo as portas toda vez que alguém como nós a procura. No porquê algo em sua aura não parece humano, parece divino.

O que ela quer?

O que ela sente?

Com isso.

Conosco.

A masmorra parece vibrar com a minha expectativa. Tento desviar os olhos do rosto de Madame, que está pensativo, sorridente. Aquele sorriso no canto dos lábios pintados de preto, aquele sorriso que eu aprendi a me acostumar. Desvio o olhar de Madame e olho para qualquer outra coisa.

Para a cruz de Santo André, adornada com luzes de LED vermelhas.

Para os muitos chicotes, chibatas, palmatórias e outros acessórios de impacto, pregados nas paredes como quadros.

Olho também para o dossel logo à nossa frente, para sessões que exigem cama, embora nunca tenha visto ou ouvido falar de algo assim acontecendo aqui.

Olho para o lustre, cheio de brilhantes e imitações de velas, que Madame nos faz cuidar com todo carinho. Uma vez, me mandou subir em uma escada e limpar a poeira de cada um dos cristais com a língua. Eu o fiz com um sorriso.

— Vou te dizer que por muito tempo eu não soube o que era. Eu achava que era sexo. Que era gozar. Mas a verdade é que não preciso, e nem quero, o seu toque, ou o toque de ninguém — começa Madame, a voz macia como se falasse com dois gatinhos.

Ouço a submissa suspirar, do outro lado.

Recebo, e aceito, as mãos de Madame no meu cabelo. Fecho os olhos.

— Sexual mesmo, é minha memória — continua ela. — O que me faz feliz, verdadeiramente, é saber que posso te colocar de joelhos a qualquer momento, em qualquer lugar. Posso te fazer lamber o chão, se eu quiser. Posso pisar no seu rosto.

Junto minhas mãos ao peito, confortável. Sua voz invade minha mente tal qual a contadora de histórias que ela é.

— Mas o que me dá prazer é saber que, se você estiver em sua casa, longe de mim, e eu quiser que você lamba o chão, você vai fazer isso. Vai me obedecer. Vai me obedecer de perto e de longe, porque eu te castrei e eu te adestrei.

Ela está respondendo uma questão que não veio de mim, mas por um instante, de olhos fechados, me imagino sozinho com Madame, ela abrindo seu coração para mim assim como eu um dia fiz com o meu. Consigo ignorar a presença de outra pessoa na masmorra.

Aquela resposta, de algum modo, é para mim.

— O que me dá prazer é saber que se eu pegar meu cigarro e queimar sua virilha, você vai deixar. Vai me agradecer — Madame sussurra. Eu me arrepio. — Se eu pegar meu cigarro e queimar o meio da sua testa, você vai deixar. E vai me agradecer.

Vou me lembrar de pedir por isso na próxima sessão em que ela me permitir falar. Vou implorar. Quero ter a visão de seu cigarro sendo apagado bem na minha testa.

— Eu não o faria, não sem você deixar, mas não é fazer que me excita. É saber que eu posso.

Deixo a voz de Madame me levar ao meu lugar.

— E eu posso tudo. Posso te deixar em pé por horas. Posso te sufocar, te pisar no rosto. Posso te esmagar com meu peso e posso te fazer limpar cada milímetro dessa casa. E você quer que eu faça isso. Quanto mais eu me nego, mais você quer. Eu controlo quando você goza, quando você se toca, quando você chora.

Sim.

Sim.

— Quando um de vocês me deseja, é que vou me negar ainda mais. Se um de vocês me questiona, é quando vou dar apenas respostas pela metade. Porque assim, o controle é maior. Mais forte. Mas eu permito a sua imaginação.

Assinto. Abro os olhos para vê-la sorrindo.

— Por enquanto, sua vida é minha — diz ela.

Não consigo segurar um suspiro.

Madame, enfim, olha para mim.

— Não é, minha mesinha?

— Sim, Rainha — a submissa responde.

— Sim, Madame — respondo eu.

Conto inspirado em uma sessão real com frases e contextos reais. Os personagens não possuem descrição física de aparência para proteger as identidades dos submissos.

Oi, pessoal. Quero agradecer ao Koda pelo espaço, a todo mundo que engajou nas redes, a todo o carinho que me repassaram quando fui anunciada no projeto. Sei que estou sumida das redes sociais, mas preciso desse tempo longe para esfriar a cabeça e ter novos ares. Prometo que volto em breve, a Kinktona não será meu último conto desse ano (vem coisa grande por aí, tá?), mas por enquanto ainda vou ficar no meu ninho mais um pouco. Pedi ao Koda por mais esse cantinho para expressar meu amor e agradecer, mesmo, e dizer que estou viva e bem, na medida do possível. E que, na minha cabeça, todos vocês são minhas mesinhas. A não ser que sejam minhas Madames.

Um beijo,

ani ♡(◡‿◡)

EDIT:

Leia todos os textos da kinktona!

E se você leu até aqui, essa é só a segunda rapidinha de DEZ com autores convidados que virão nas próximas semanas. Fica por aqui, manda pra amigues, divulga nas redes sociais e me ajuda a levar esse projeto mais longe ❤️ 

É isso! Um xêro e um queijo,

Kodinha

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