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Isso não é uma rapidinha
Isso não é uma rapidinha.
Na real, não tem nada de rápido em toda essa história: nem nela em si, nem no que levou a ela, nem em tudo que ela vai descrever.
Eu escrevo desde pequeno, e contar histórias, pra mim, sempre esteve intimamente ligado a compartilhar. Escrevia poemas no fundamental e compartilhava com as minhas amigas. Escrevia continhos no tumblr, e compartilhava com quem me seguia. Escrevi microcontos e crônicas durante todo o ensino médio, e compartilhei tanto que até fiz cópias impressas deles. Fiz toda uma página no facebook sobre isso, e o Ostras foi minha morada durante parte da minha graduação. Também postei no medium, no twitter, em sites que nasceram e morreram nesses últimos anos, em uma porrada de lugares.
Sempre falei por aí que eu gostava de fazer as pessoas sentirem coisas. Outra grande piada é que já fui especialista em deixar as pessoas tristes, porque eu estava muito triste, e hoje talvez minha especialidade seja deixar as pessoas meio horny. Todo pokemon evoloi.
Escrever para mim sempre foi uma partilha de sentimentos, sobre chacoalhar as certezas das outras pessoas, confundir os sentidos, abalar estruturas e balançar corações. Eu tirava as coisas que se amontoavam dentro de mim na esperança de que elas ajudassem a desamontoar coisas dentro de outras pessoas, e muitas vezes elas desamontoavam mesmo. Loucura.
Escala é uma coisa engraçada. Se eu sou essa pessoa que gosta de compartilhar desde cedo, que vê que arte nenhuma faz sentido pra mim se estiver afundada em uma gaveta, eu devia estar mais acostumado com... isso, né? Isso. Essa coisa amorfa, com cheiro duvidoso e esquisita que é o agora. Esse lugar estranho, cheio de olhos ao redor, mas tão escuro e silencioso ao mesmo tempo. Bom, mais ou menos silencioso. Tem gritos. Eles podem ou não ser meus próprios gritos, às vezes eu infelizmente não consigo distinguir.
Mas eu não me acostumei com isso.
Olho ao redor e a escuridão faz eu me sentir sozinho. O silêncio faz eu me sentir sozinho. Os gritos também. Eu sei que não estou sozinho, consigo sentir outras figuras amorfas aqui comigo, consigo sentir olhos grudados nelas, consigo sentir mãos aflitas coçando e coçando e coçando, consigo sentir escadas, elevadores, e consigo até mesmo ver pontos de luz - gente que talvez tenha se acostumado com isso, ou aprendido a viver com isso.
Eu não.
Quando comecei a escrever contos eu achava que nunca ia conseguir terminar uma história que tivesse mais que duas páginas. Um especialista em microcontos e poesia não tem muita chance contra narrativas maiorzinhas, né? Eu tava errado. Estou errado com uma frequência considerável quando o assunto é acreditar em mim mesmo. Terminei videogames com sede de fazer o que eu amo, que é compartilhar. Me diverti muito no processo inteiro, e descobri que escrever era ainda mais divertido do que parecia.
Em 2019, escrever para mim era isso. Algo pulsante, que passava por absolutamente todos os pedaços da minha vida e fazia parte da forma como eu me relacionava comigo mesmo e com o mundo. Parte do meu processo de sentir, de entender, de traduzir e traduzir e compartilhar e socar muros e construir pontes. Não é que eu quero dizer que eu era feliz e não sabia, porque deus sabe o quanto minha cabeça era e ainda é cagada. Mas com certeza minha relação com a escrita era mais simples, e de fato, eu não sabia que podia se complicar tanto.
Videogames me abriu muitas portas, e eu sou grato por cada uma delas. Direta ou indiretamente, quase tudo (ou se pá, tudo?) que veio depois só veio porque eu tinha escrito esse conto. Eu também gostava muito de escrever erótico, e comecei a postar mais e mais disso no começo de 2020. Era divertido. No quesito provocar reações? 10/10. No quesito compartilhar coisas que eu surtei escrevendo? 10/10. No quesito atender pedidos de amigos que só queriam ler uma coisinha legal? 10/10. Não tinha lado ruim, certo?
Errado.
Tinha um lado muito ruim: no começo eu dormia tranquilo, satisfeito, feliz. Mas minha conta começou a crescer, mais olhos se juntaram na multidão e eu comecei a me sentir esquisito. Errado. Sujo. Diferente demais. Quase parei de escrever erótico. Encontrei gente muito boa no meu caminho que riu comigo e surtou comigo e gostou dos meus surtos de um jeito diferente de tudo que eu já tinha experimentado. Se ainda escrevo hoje, devo a essas pessoas.
As minhoquinhas que começaram a surgir nessa época nunca foram embora, e se multiplicaram e multiplicaram e fizeram filhos e netos e bisnetos e minhoquinhas não morrem fácil, e eu não sou um bom matador de minhocas.
Mas sabe no que sou bom? Em ter medo.
Sempre. Desde criança. Especialidade da casa: cenários impossíveis, ansiedade nervosa e medo em doses cavalares.
Jogador número três veio a mim em um sonho. Brincadeira. Mais ou menos. Escrevi voraz e feliz, com amigos ao meu redor e sorrindo muito. Tudo parecia ainda mais ou menos sob controle, eu acho. Partilhei essa história sorridente, alegre, ansioso. Fui lido por muitas pessoas que eu admiro, e foi incrível. Eu digitei pareceu incrível, e depois apaguei, porque foi de fato incrível, mesmo com todo o medo - de me acharem patético, de ser patético de verdade, de no fundo não ser bom, de deslizar e fazer merda, falar merda, de ser um merda.
Acho que foi depois disso que as coisas ficaram confusas. Acho, não tenho certeza, porque quem tem certeza de qualquer coisa hoje em dia? Olhos. Eu dormia e acordava e via os olhos, e comecei a me encolher de medo. Na escuridão eu não sabia distinguir quem era lobo bom, quem era lobo mal, quem não era lobo, mas era ainda mais feroz, quem era inocente. Às vezes também não sabia distinguir o que era eu e o que eram as sombras, onde terminava minha essência e começava meu medo.
O que aconteceu depois disso é uma história um pouco trágica, mas também muito silenciosa. O medo passou suas garras ao redor do meu pescoço, colou sua boca no meu ouvido e começou a sussurrar coisas: você vai cair, sua arte não presta, você nem devia estar aqui, por que diabos você acha que devia estar aqui, por que diabos eles acham que eu devia estar aqui, você vai errar e vai ser horrível, escolhas, você sabe que tem que fazer muitas escolhas, não sabe?, e vai ser horrível, e elas vão ser julgadas por especialistas em escolhas dos outros durante muito e muito tempo, e você não sabe se sabe lidar com tantos especialistas, porque você era só um não binário com muitos amigos que liam suas bobagens, você não é um Escritor, não de verdade, não com e maiúsculo, não no fundo, você não é ninguém, você não é nada, sua arte não vale nada.
Ele falava comigo e só comigo, e eu tentava não transparecer que tava suando, que minhas pernas estavam tremendo, que tinha um monstro nas minhas costas. Deu certo, eu acho - talvez alguém diga “mas Koda, a gente tava vendo o monstro o tempo todo”, e eu não saberia o que pensar disso, porque que merda.
Escrevi no final de 2020 e 2021 como se minha vida dependesse disso. Uma coisa atrás da outra, uma publicação atrás da outra, com medo e tudo, com ansiedade e tudo, com vontade de vomitar e tudo - vomitando tudo -, palavras atrás de palavras, e em algum momento no meio do caminho eu percebi a verdade: estou correndo muito e quando/se eu parar, vai dar merda.
Ironicamente eu sei disso porque eu escrevi muito sobre isso. Estava fuçando meu medium nas últimas semanas e percebi quantas vezes eu escrevi sobre estar exausto, e sobre cuidar de quem estava ao meu redor, e ser cuidado por quem estava ao meu redor, mas sobre continuar correndo mesmo assim, porque eu precisava continuar correndo. Eu fiz acordos, e eu levo acordos muito a sério, então correr era tudo que havia para ser feito. Correr e escrever, porque prazos existem e eu sou um ansioso perfeccionista maldito.
O medo correu comigo, ainda montado nas minhas costas, ainda gastando muito da minha energia, ainda sugando parte da minha essência.
Quanto mais eu escrevia, mais difícil era. Escrever em si era difícil, mas também pensar era difícil, e decidir coisas sobre as histórias, e projetar para onde iam os personagens. Em essência: criar era muito difícil e envolvia quase sempre muito sofrimento.
(Medo, envolvia muito, muito medo. Do mundo, das pessoas, as reações, do que estava sendo escrito, do que não estava sendo escrito, dos detalhes, das nuances, medo de compartilhar. Que absurdo maldito. Medo de compartilhar!) Mesmo assim, continuei escrevendo, porque prazos e datas e acordos e responsabilidade, né? Eu sou essa pessoa. Sempre fui essa pessoa.
Daí acabei Manda foto de agora e finalizei minha última entrega obrigatória. Ia ter um descanso merecido: já fazia mais de um ano que eu escrevia um conto atrás do outro, sem parar, sempre com prazos, sempre com lobos, sempre com medo.
Esse descanso rapidinho se transformou em pânico.
Pânico de ficar parado, de não conseguir me mover, pânico de nunca mais conseguir escrever. Como sou especialista em ter pânico, isso tomou conta muito rápido. Isso percebi não só de memória (e por essa sensação estar aqui até hoje), mas também porque também escrevi sobre isso.
Eu gosto desse texto porque ele ainda é real, ainda é como eu me sinto.
É esquisito porque depois de Manda foto de agora eu escrevi muita coisa. Contos, microcontos, desabafos, cartas, poesias, mas eu não me sentia escrevendo de fato. Esquisito, né?
Ai tive a ideia das rapidinhas.
Fazia muito tempo que eu não sentia esse fogo queimando dentro de mim. Essa satisfação em escrever, em mandar pros amigos, me divertir com o caos, botar fogo na palha e sair correndo gargalhando maniacamente, satisfeito e feliz.
Cheguei ao ponto de escrever uma rapidinha por dia, muito feliz com o resultado e com as ideias que eu estava tendo. Era divertido, era caótico, provocava sentimentos nas pessoas e rápido de fazer - foco, meu foco se desfez no meio do medo, então rápido era tipo… perfeito. O melhor de todos os mundos?
Ai eu lancei a newsletter e tive a ideia do catarse.
A coisa começou até divertida, mas rapidamente começou a ficar amarga. Voltei a ter medo de escrever. Pulava dias falando “amanhã eu escrevo, prometo”. Não escrevia. Me enrolava e estava nas quartas de madrugada sofrendo para ter o texto pronto para as quintas. Botei um basta, e decidi gastar os meus finais de semana inteiros se necessário para não passar por isso. Deu certo. A que custo? Ficava horas encarando o computador com medo. Amargo. Obrigação. Eu devo fazer, então eu fazia. A que custo?
Chorei de medo. De ter perdido minha essência. Por me sentir sozinho nesses medos. Por sentir que era só comigo esse medo todo, e todo o resto das pessoas estava lidando bem com tudo isso, né?
Sei lá.
Um tempo atrás um amigo me deu um livro incrível chamado Meu amigo medo, e ele tem um capítulo muito bom sobre medo e criatividade. Sobre como podar nossos medos é podar nossa criatividade, porque quando nos escondemos de tudo que é desconhecido como vamos explorar ideias, explorar novos cenários? A autora estava certíssima.
Eu chorei porque percebi que estava fugindo dos meus medos sem perceber o monstro nas minhas costas, sem perceber que ele estava sempre aqui, babando na minha testa. Sem perceber que eu não posso mandar ele para longe, e só posso continuar apesar dele. Não como se ele não existisse, mas encarando ele nos olhos, rosnando de volta, gritando com força.
(Fraco, me sinto fraco, pequeno, cansado, triste. Escrever não deveria ter cara de sofrimento, mas, em muitos níveis, às vezes tem)
Nos últimos meses consegui dar nomes, rosto e forma para esses medos. Percebi que estava deixando que eles guiassem minha escrita - ou a ausência dela -, e que eu, na maior parte do tempo, não conseguia mais escrever por prazer.
Que grande e absoluta merda, não?
Esse texto enorme, cheio de voltas e rodopios, esse desabafo cru… Isso sou eu olhando nos olhos do medo, limpando a baba do meu rosto, reconhecendo que não é escrevendo com as mãos tremulas e chorando de desgosto e sentindo raiva de mim mesmo que vou vencer o medo. Não é esmurrando a faca que está tentando me matar que eu vou vencer o medo.
Pra começo de conversa, não dá pra vencer o medo. Não de verdade.
Essa é a carta de despedida do catarse do Só uma rapidinha, e o anúncio de que a newsletter vai mudar de periodicidade. Para qual? Boa pergunta. Sei lá.
Passei meus últimos meses lendo vorazmente, buscando livros que me arrebatem e me tragam de novo o gosto de surto e caos e bom humor que eu adoro na leitura e adoro projetar na escrita. Está começando a funcionar de novo, e isso é bom. Decidi fazer algumas coisas por mim, para me ajudar a trazer gosto para a coisa de novo.
Tenho algumas boas ideias que quero trabalhar, mas sem pressa, porque pressa me deixa em pânico. Pressa me faz pensar me datas, em entregar, em um compartilhar grandioso e esquisito (e eu nem sou tão grande assim), pressa faz meu coração acelerar e me põe pra fazer arte que não é genuinamente eu. Cansei de fazer arte que não é genuinamente minha, que não grita “KODA” em cada pedacinho, que não conversa comigo, não de verdade. Cansei de ter medo de cada escolha que eu fazia, de cada detalhe das minhas decisões, de me escorar em todo mundo pedindo ajuda, por favor, porque pensar nessa cena está me deixando com vontade de vomitar - e a cena nã era nada demais, era só uma cena.
Isso não é um adeus de fato.
Só estou dizendo que preciso encontrar outra forma de fazer isso funcionar. Isso. Preciso me voltar para mim mesmo, redescobrir qual é a minha voz, o que é que faz meu coração gritar, e redescobrir a sensação de fazer arte porque eu quero e preciso fazer arte, e não porque é demandado que eu faça arte.
(Em tempo: Sou muito, muito grato a todas as oportunidades que tive. Isso não sou eu cuspindo no prato que eu comi, espero que não me entendam mal. Sou grato pelas pessoas que conheci, pelos caminhos que trilhei, as pessoas que toquei e abracei, grato por quem me acompanha e grato por quem ainda anda comigo. Mas também tenho medo, e também fiquei mal, e também preciso me recuperar. Faz sentido? Espero que faça sentido)
Ainda vou estar por aqui e vou continuar escrevendo. Preciso continuar escrevendo. E, se meu coração deixar, vou compartilhar muita coisa. Ainda não sei como, mas eu vou. Como eu disse, escrever, compartilhar, conversar, quebrar muros e criar pontes sempre foi a única coisa que fez sentido para mim. Preciso encontrar esse sentido de novo, porque preciso me encontrar de novo.
Se você quiser conversar comigo, por favor, converse comigo! Minha DM, e-mail, WhatsApp, telegram, etc, estão todos abertos. Sobre esse texto, sobre escrita, sobre sentimentos ou sobre gatinhos fofinhos - eu tenho dois e adoro falar deles.
O medo não vai me vencer. Vou fazer as pazes com ele, vou encarar seus olhos escuros, sentir seu pelo caótico, me alimentar de suas sombras opressoras, mas tudo isso exige tempo. Reaprender a se cuidar, reaprender a sua própria essência, leva tempo.
Isso sou eu deixando o tempo agir para curar a minha arte.
Em Os despossuídos, o narrador fala que a verdadeira jornada é a volta para casa. Estou voltando para dentro de mim, e espero que possamos nos esbarrar muito no caminho, trocar muito, partilhar muito - porque outra frase que amo muito diz que a verdadeira aventura são os amigos que fizemos pelo caminho.
Clichês, talvez, mas também verdade.
“Eu não sei onde fica o outro lado, mas acredito que seja em algum lugar, e espero que seja bonito.”
Um abraço forte, do jeitinho que eu adoro - com direito a rodopiar do chão, se você deixar,
Kodinha.
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